
‘Não sou o rei do pagode e tampouco cantei em Brasília
Mas nunca tentei crescer na vida, me dar ou tirar vantagem falando mal daquilo que mais amo
daquilo que tem poder de nos conceder a vida
Da única coisa que pode nos dar o direito de morrer
Nunca tentei tirar vantagem falando mal daquilo que nos é mais sagrado”
João Batista
O ábum ‘Rei do Gado’ de Tião Carreiro e Pardinho é de 1961 e nele estão presentes as músicas: Alma de boêmio, Borboleta do Asfalto; Punhal da Falsidade (Mulher Sem Nome); Amigo sincero; Teus Beijos; Despedida; Tormento; Nove e Nove; Rei do gado; Urutu cruzeiro; Minas Gerais; Carteiro, Pagode em Brasília e Maria Ciumenta. Tião Carreiro e Pardinho é um dos representantes da primeira geração da música caipira que está dividida em três gerações. Este artigo faz parte do meu programa que consiste em investigar o ódio e o ressentimento a mulher na música sertaneja e neste artigo apresento o ressentimento e ódio a mulher no referido álbum.
O conceito de ódio neste texto está baseado no filósofo Baruch de Spinoza. Para Espinoza, amor é quando um elemento externo é causa de alegria em mim. Ódio por sua vez, é quando um elemento externo é causa de tristeza e deleite ocorre quando a pessoa é causa de alegria a ela mesma. O conceito de ressentimento está baseado no filosófo Nietzsche que é um spinozista. Ressentimento ocorre quando atribuo a causa, a culpa do meu sentimento a outra pessoa. Má conduta ocorre quando culpo a mim mesmo pelo meu sofrimento. Todos se referem a modos reativos de lidar com as situações. No modo ativo de lidar com as situações não se atribui a culpa pelos nossos sofrimentos a terceiros, mas tratamos nós mesmos de remoê-los e digerí-los.
E considerando o álbum Rei do Gado, logo na primeira faixa encontro mais uma evidência de que a música sertaneja está eivada de ódio a mulher. A primeira faixa do álbum, “Alma de boêmio”, trata de um homem dito sem sorte, desditoso, sofredor, alcoólatra, vagabundo, alguém que perdeu amigos, que perdeu tudo, maltrapilho e que atribui sua má sorte a uma mulher, a uma mulher que não o quer e não obstante, tida por cruel. Ela diz a ele: ‘Se hoje vives maltrapilho pela rua/ A culpa é toda tua, não soubeste me conservar’. Para este, a mulher não é capaz de amar e este seria o destino daqueles que acreditam que há amor no coração de uma mulher. Poderíamos dizer tratar-se de um caso isolado, mas na canção tenta generalizar isso, questionando a própria capacidade de amar da mulher e nisso ela vai moldando, junto com outras canções, a realidade.
‘Isto acontece para um homem que acredita
Que existe amor no coração duma mulher’
A vida miserável, a pobreza em que o referido homem se encontra é atribuida a mulher, a mulher é culpada. E aqui a mulher é vista como sinônimo de pobreza a vida de um homem, um argumento muito similar e que tem ganhado força na atualidade, tanto que homens tem optado em viver suas vidas fora do convívio com uma mulher e outros tem defendido medidas extremas, até mesmo violentas contra a mulher. É o chamado movimento red pill.
“Esta mulher me deu este maldito prêmio”
Atribui a ela ainda a crueldade que consiste em ela brindar sua desgraça.
‘Esta mulher na mesma rua ainda vive
Bebe com outro a brindar minha desgraça’
Enfim, temos aqui a imagem de uma mulher que vai sendo construida no imaginário popular de que não sabe amar, cruel e causadora de infortúnios, de vícios na vida de um homem, capaz de deixá-lo na embriaguez e na pobreza absoluta. Mas Tião Carreiro e Pardinho expressa esse ódio sozinho? Acredito que não. Não se trata de um projeto pessoal de Tião Carreiro e Pardinho expressar esse ódio. O que eles fazem é captar, serem vetores, porta vozes de um ódio e um ressentimento que já se encontravam presentes na sociedade brasileira antes mesmo do surgimento do disco. O disco, as canções e as duplas se aliam e começam a expressar este elemento da sociedade, a justificá-lo e a validá-lo.
A segunda faixa, “Borboleta do Asfalto”. Embora a mulher não seja motivo de tristeza, no entanto, é menosprezada e tem sua vida livre julgada. Na canção ela é apresentada como uma mulher solteira, com vida livre, saindo e voltando quando quer e trocando de parceiros. O fato desta mulher poder sair e voltar quando quiser é motivo de vergonha para o mesmo como uma forma de coibir a sua liberdade.
“Assim como as nuvens que vagam no espaço
Como as borboletas vão de flor em flor
Assim você vive de braços em braços
Buscando os carinhos de um novo amor
Quem sabe os detalhes, da sua história
Não crê que estejas na lama caída
Pensava que o mundo lhe desse a glória
E hoje se encontra no inferno da vida’
Em o “Punhal da falsidade (mulher sem nome)” também existe uma tristeza no compositor derivada das atitudes de uma mulher. E na letra ele mesmo diz e no mesmo sentido, as escolhas, a liberdade de escolha da referida mulher são criticadas. E aqui aparece a ideia de recompensa, a necessidade de punição e o início da negligência e falta de solidariedade com a mulher quando ela mais precisar. Se esta mulher um dia for pega em infortúnio é porque ela mereceu, é porque em algum momento de sua vida ela foi causa de sofrimento a um homem. Quando isso é generalizado a todas as mulheres, pode trazer consequências nefastas como: uma mulher necessitada de cuidados nas ruas de uma cidade pode ter estas necessidades negligenciadas pela população, colocando sua saúde em sério risco. A generalização da ideia de que mulher merece sofrer pode nos tornar mais insensíveis às necessidades desta mulher quando ela mais precisar seja num acidente, num hospital, numa instituição pública, na carência de alimentos ou na necessidade de cuidados quando idosa. A traição seria algo que requer uma punição ou a negligência e o sofrimento da mulher poderia ser visto como algo natural.
“Eu, que lhe dei um amor puro, hei de vê-la no futuro pagar o que fez pra mim”
Deixe esta mulher cheia de anéis
Junto com o seus coronéis
Em delírio a beber
Deixe que ela erga a sua taça
Em saúde da desgraça
Que arruinou o meu viver
Deixe Que ela siga vida louca
Beijando de boca em boca, tudo isso terá fim
Eu, que lhe dei um amor puro, hei de vê-la no futuro
pagar o que fez pra mim
Na música ‘Amigo sincero’ ele parte e vai embora para não ver a mulher que mais queria com outro. Aqui me parece que a mulher não é causa de tristeza. Não há ódio a mulher, mas aqui o que existe é o ódio ao amigo. É o amigo que é causa tristeza. Há o ódio ao triângulo amoroso. É o triângulo amoroso que é causa de tristeza. Primeira música do álbum em que não está explícito o ódio a mulher.
“Teus beijos” é a primeira canção em que a mulher parece ser causa de alegria. Existe a presença do elemento diminuitivo na canção, visando enfatizar características sensuais e o uso da expressão “corpinho de criança’. Isso pode não ser muito bem aceito nos dias atuais, podendo até mesmo ser visto como indício da normalização e tolerância a pedofilia na época. Se a mulher nesta canção é causa de alegria ao compositor ao menos não podemos dizer que esta canção possa ser causa de alegria na mulher.
(…)
“Sinto meu corpo que se queima no mormaço
Do teu corpinho tão quente e abrasador
(…)
Sinto pulsar teu coração à sete chamas
Ao sentir o teu corpinho de criança”
(…)
O teu calor que conforta os meus desejos
De beijar tua boquinha não me canso
Despedida trata-se de canção em que a mulher é causa de tristeza, portanto, baseada no ódio. Aqui é atribuido a mulher o elemento crueldade e no mais, dotada da característica de zombadora, ou seja, que se sente feliz, que se alegra com o sofrimento alheio.
Vou chorando sei que tu ficas sorrindo
Amar de tanto e tu zombar do meu amor
“Tormento’ é também uma canção em que o ódio a mulher é expresso, em que a mulher é fonte de tristeza no homem. Aqui o amor a uma mulher é fonte de desgraça.
Estou caído no inferno desta vida
Já “Nove e Nove” Nove e nove é uma canção em que a a mulher não é personagem. Trata-se de uma espécie de poemas usando a palavra nove. Aqui não há ódio e nem amor a uma mulher.
Na música “Rei do gado’, canção muito conhecida deles, reverenciada e cantada nos dias atuais, também a mulher não chega a ser personagem. Aqui é o homem, a virilidade do homem medida pelo seu poder econômico que é causa de orgulho, de alegria. Existe nesta canção um amor ao homem viril, medido pelo seu poder econômico e diria, oligárquico. Se existe um desejo inconsciente na canção, trata-se de um desejo, uma votnade oligárquica, uma vontade de ser goverando por barões do gado, do café etc. Este sentimento é muito comum nos dias atuais entre homens que admiram a virilidade de outros homens levando em consideração sua atuação e proezas econômicas. O que passa no estabelecimento é a disputa entre dois homens ricos pela afirmação de sua posição. Este amor pelo viril é exaltado aqui. Este amor ao homem elevado socialmente explicaria nos dias atuais a subserviência de alguns homens a ponto de continuar elegendo representantes do corolenismo no interior dos estados. Este homem como causa de alegria em outros homens pode nos explicar muito sobre a política atual.
Urutu cruzeiro
Também aqui a mulher não é personagem, mas trata-se de uma história de um homem que ficou aleijado por uma cobra Urutu e usava a viola e o canto como forma de se manter. O sentimento é de misericórdia, embora o portador da deficiência seja inventivo, encontre uma força para viver, o sentimento é de pena e misericórdia. Também na música “Minas Gerais” a mulher não é personagem e é a terra que a causa de alegria. Em Tião Carreiro e Pardinho e talvez em toda a primeira geração, a alegria causada pela Terra, pela natureza seja uma das virtudes destes compositores.
Na canção “Carteiro”, o personagem recebe uma carta anunciando um término de relacionamento e isso causa a tristeza que é o ódio e este ódio a mulher é afirmado na carta quando ela é chamada de falsa.
“O amor que eu tinha nela
Em ódio se transformou
Por ser uma mulher falsa
Não cumpriu o que jurou”
Noto um desejo da mãe, uma necessidade de receber cuidados quando as questões amorosas não correm a contento ou quando ocorrem desenlaces. Mas para afirmar a presença disso é necessário analisar demais álbuns.
“Das mulher que eu conheci
Só uma que confirmou
Um amor sincero e puro que nunca me traiçoou
Em minhas horas amargas
O quanto me confortou
Primeiros passos da vida
Foi ela quem me ensinou, ai!
Minha mãe que me criou”
Em Pagode em Brasília, os primeiros versos já começam insultando a mulher:
“Quem tem mulher que namora
Quem tem burro empacador
Quem tem a roça no mato
Me chame que jeito eu dou”
Eu tiro a roça do mato, sua lavoura melhora
E o burro empacador, eu corto ele na espora
E a mulher namoradeira
Eu passo o couro e mando embora
É dito que na mulher namoradeira ele passa o couro e manda embora. Agora, não sei em que sentido ele diz isso. Se há uma conotação sexual por trás do que é dito, se ele quis dizer que transa com ela e manda-a embora ou se dá uma surra nela e manda-a embora. Não sei se aqui a referida frase foi dita no mesmo sentido em que se diz : ‘vou te dar um couro”, fazendo alusão a bater. Se for a segunda visão, nota que a música sertaneja acomoda bem esta ideia de agressão contra a mulher, a ponto de um compositor e violeiro fazer tal afirmação. Fazer uma suposta justiça quando o assunto é traição feminina. Estes versos, ainda muito repetidos nos dias de hoje, evoca a violência contra a mulher como um meio, uma solução, uma punição.
“E a sogra encrenqueira, eu dou de laço dobrado”
Se “dar de laço dobrado’ significa bater na sogra. Neste verso fica bem claro esta questão da violência contra a mulher evocada nas letras da música sertaneja.
Bahia deu Rui Barbosa
Rio Grande deu Getúlio
Em Minas deu Juscelino
De São Paulo eu me orgulho
(…)
Paulista ninguém contesta, é um brasileiro que brilha
Quero ver cabra de peito pra fazer outra Brasília
Não obstante, mais uma vez o homem, no caso aqui, o homem elevado politicamente, o político como causa de alegria, de orgulho. Quando se refere a mulheres os versos são causa de tristeza e motivo de agressão o que evidencia as expressões “passar o couro’ e ‘dar de laço dobrado’. No entanto, quando se refere a homens, estes são causa de alegria, orgulho e reverência. O que vale dizer que neste álbum há muito mais amor devotado a um homem ascenso socialmente que a mulher. Esta postura de reverência é notada também entre aqueles homens que gostam de ouvir e param para ouvir e prestar atenção na referida canção. Geralmente é ouvida com reverência, com afirmações positivas com a cabeça como se estivessem diante de uma revelação inefável o que confirma que este amor pelo viril seja algo bastante compartilhado ainda que inconscientemente entre alguns homens.
E por fim, o álbum termina com Maria Ciumenta. Entre tantos amores, o compositor escolhe Iracema, uma que possui dinheiro.
Agora vivo num dilema porque Iracema é meu amor primeiro
Aguarde nosso casamento e pro meu contento ela tem dinheiro
Conclusões a respeito deste álbum
Das 14 canções apresentadas, em 7 canções há ódio e ressentimento em relação a mulher. Nestas, a mulher é vista como responsável e causa do sofrimento e pobreza do homem. Em 6 canções não há ódio em relação a mulher. Em duas o homem é causa de alegria, de orgulho. Notadamente o homem que expressa sua virilidade por meio do poder econômico, por meio do seu poder oligárquico é motivo de orgulho e alegria no compositor. Parece existir no compositor, uma vontade, muito presente no interior do Brasil, de um poder oliquárquico, há um frenesi, quase um tesão dos homens por este tipo de homem. Isso se torna verdadeiro já que o deficiente em Urutu Cruzeiro, um homem sem posses, não é motivo de alegria, de orgulho, mas de pena. Enfim, não são todos os homens que importam, mas os ‘cabras de peito’. Só existe uma canção em que a mulher é causa de alegria, mas muito duvidosa e muito questionável. Isso porque, os elementos presentes nela, expressões no diminutivo como ‘corpinho’ e ‘boquinha’ e o surgimento da expressão ‘seu corpinho de criança’ nos fazer pensar como a pedofilia poderia ser algo bastante normal e tolerada na década de 1960. Enfim. Por meio deste artigo mostrei o que não faz bem a alma da mulher, o que pode com o tempo adoecer seu espírito. Pelo exposto, o homem que ouve estas canções pode se sentir confortado ou pode ter seus sofrimentos e má sorte acalentadas. No entanto, a mulher ouvir, sistematicamente e diuturnamente este tipo de música pode lhe trazer certos sofrimentos. Concluo que no álbum o Rei do gado, de Tião Carreiro e Pardinho de 1961 não há canções onde a mulher é causa de alegria (amor), mas somente canções onde a mulher é causa de tristeza (ressentimento). Descobrir isso é importante, pois nos possibilita trilhar uma outra direção, a saber, ao menos questionar: Qual a canção, qual a música que faz bem a alma da mulher?
Tentando fugir desta situação, de acordo com a análise do álbum “Rei do Gado” qual a música que faz bem para a alma da mulher? Uma música em que os males do mundo não sejam projetados na mulher. A mulher não pode carregar esta culpa, este fardo. O sofrimento existe e ele decorre do mau uso que se faz dos poderes. Faz bem para a alma da mulher, uma música em que a vida boêmia, a má sorte, o sofrimento do homem, o alcoolismo, a vadiagem não seja atribuída a mulher, uma música em que a mulher não seja responsabilizada por estas coisas. Faz bem a alma da mulher, fortalece e preserva a sua saúde mental, uma música que não tente culpar a mulher por estas coisas. Faz bem a alma da mulher, uma música que não desconfie da sua capacidade de amar. A vida real, o nosso cotidiano está repleto de exemplos práticos da capacidade de amar da mulher e da sua capacidade de transformar as coisas para algo melhor. Faz bem a alma da mulher, uma música que não atribua a ela a crueldade, se sentir feliz com o sofirmetno alheio, uma música que não questione a sua liberdade de ir e vir, uma música que não enseje a punição ou a negligência de suas necessidades quando ela mais precisar, seja num acidente, na velhice ou na necessidade de cuidados de parentes e vizinhos. Faz bem a alma de uma mulher, uma música que não lhe cause o nojo de tere comparada as partes do seu corpo às do corpo de uma criança. Faz bem a alma de uma mulher e também a toda sociedade, uma canção em que não é chamada de falsa, uma canção que não questione seus amores, seu direito de amar. Faz bem a alma de uma mulher uma canção que não fale mal de sogra ou que enseje a punição a sogra.
A música que faz bem a mulher é a música que afirme os efeitos positivos da mulher sobre o mundo. Uma música em que a abundância, o sucesso, as coisas boas sejam explicadas sejam causadas pela mulher. Faz bem a alma de uma mulher uma música em que as características positivas do homem sejam também atribuidas a mulher. Quantos homens não aprenderam a escrever, não foram alfabetizados por uma mulher? Faz bem a alma da mulher uma música que afirme a capacidade de amar da mulher. A vida real está cheia de exemplos práticos desta sua capacidade de amar e a música poderia usar estes elementos. Faz bem a alma de uma mulher uma música dedicada a afirmar sua beleza, sua sensualidade, mas também sua bondade e inteligência. Faz bem a alma de uma mulher, uma música que afirme, defenda e estimule sua liberdade, uma música que enseje a sua proteção nos momentos em que mais precisar. Faz bem a alam de uma mulher uma canção que fale bem da mãe dela, que fale bem da sogra. Porque a sogra também é mulher, senão uma das mulheres mais importantes em sua vida.
