Não bastasse ser uma raridade na música sertaneja, mais que uma simples canção trata-se de um caminho para revolucionar o fazer musical sertanejo, oferece pistas para um bom relacionamento e é relevante do ponto de vista político o que há torna interessantemente relevante, pois nos revela uma “canção do amor inabalável’ que nos protegeria do ódio e de projetos de ódio. Em Leão não há ódio ou ressentimento de nenhuma espécie, pelo contrário há 3 tipos de amor, contrariando tudo o que tem sido feito na música sertaneja. Na música sertaneja, a maioria das canções são de ódio e ressentimento a mulher e muito raramente encontra-se uma canção de amor a mulher, em que a mulher é causa de alegria. É isso mesmo, canções de amor na música sertaneja são exceção. Para mim ‘Leão’ é uma verdadeira canção de amor, mas de um amor extremo. Encontrar e analisar esta música foi algo surpreendente. Ela me revelou que o fazer musical fora do ódio e ressentimento a mulher é possível, é muito mais interessante do que se imagina e muito próximo da beleza e da felicidade. Me desculpe, mas somente com palavras de baixo calão consigo expressar o quão maravilhosa esta música dentro do contexto de minha análise. Aqui, já que estou analisando músicas sertanejas, ela será analisada pela perspectiva de quem fala seja Marília Mendonça até porque é difícil identificar quem fala e quando fala na música uma que vez que suas falas, de Marília Mendonça e Xamã, se misturam. Segue a letra da canção. Existe uma outra versão publicada no perfil de Xamã que é mais completa, mas todo o potencial revolucionário se dá quando Marília Mendonça canta esta música. Ao analisar a música da perspectiva do compositor esse potencial não é revelado ou se revela superficial. E isso nos traz outra descoberta: certas canções são mais potentes em determinados contextos que em outros.
O SOL
Que o Sol da manhã te dissolva
Seu vampiro de filmes pastelão
Mas quem vai nos julgar?
Sou seu despenteado leão
Sei que cê me entende bem
Sempre foge quando namora
Se você não ama ninguém
Por que tá me escutando agora?
Sua linda, tão louca
Minha Mona Lisa, tira a minha roupa
Me fascina, me assassina, me beija na boca
Minha mulher, menina, me ensina a ser vida louca
Teu olho piscina me afoga e faz boca a boca
Renova minha rima, vem de garfo que hoje é sopa, menina
Mas quem vai nos julgar?
Vilão particular
Se eu subo nesse palco aqui
Foi Deus que me criou assim
E os holofotes vêm ao meu encontro
É que eu te amo e nem te conto
Não, não posso ser seu santo
Sou fato ou hipótese
Sou rei, cigano ou nômade
Desculpe esse meu jeito soberano
Mas hoje é por você que eu canto
É por você que eu canto
Sei que cê me quer também
Marília leoa gostosa
Posso te ligar, meu bem?
Que que cê tá fazendo agora?
Tão lindo, tão louco, meu grande amigo
Depois de você, os outros são outros
Cê tá fodido, vamo fazer amor
Cantar um sertanejo antigo e beijar na boca, amor
Pode ser até que você não me dê moral
Até me ver no espaço pela banca de jornal
Relembrando o prisma pelo qual realizamos esta análise: Quando uma coisa externa nos causa alegria temos o amor. Ódio é a tristeza em nós derivado por uma causa externa. E ressentimento, é quando atribumos a culpa por algo de ruim que nos acontece, a um evento exerno e deleite ocorre quando somos causa de alegria em nós. Estes elementos são encontrados na filosofia da diferença, sobretudo em Espinosa, Nietzsche, Deleuze e Guattari. Quais os elementos presentes na música Leão de Marília Mendonça?
Elementos presentes na música ‘Leão’
Em Leão ao contrário de outras canções, a mulher não causa e tristeza no homem, portanto, é uma música que não contribui para que a mulher seja vista como causa de tristeza de um modo geral. No mesmo sentido, algo muito comum em compositoras, o homem não é causa de tristeza, ou seja, também não há ressentimento e ódio em relação ao homem. E também como em Tião Carreiro e Pardinho não existe uma vontade, um desejo por um homem ascenso do ponto de vista econômico e social. Não existe um desejo, uma vontade de coronel. No mesmo sentido não é uma canção que está na falta, num desejo que não se realiza, o que caracteriza as canções tristes e a maiora das músicas sertanejas que é o desejo faltoso. O que é para se realizar, a união está sempre distante no horizonte, um ideal. Em Leão não há este desejo como falta.
Não existe a possibilidade de ressentimento nesta canção
A emergência de cantoras como Simone e Simaria, Simone Mendes, Maiara e Maraísa e Marília Mendonça na música sertaneja despertou uma esperança que algo inovador estivesse acontecendo. No entanto, há canções cantadas por estas mulheres em que o homem é causa de tristeza, de ódio. Isso significa que apesar da mulher ocupar espaço no universo da música sertaneja estão se utilizando de uma metodologia retrógrada, se utilizam do ressentimento. Tudo se passa como: Já que eles propalaram o ódio em relação às mulheres, propalemos também o ódio em relação aos homens. No final dá na mesma. Acaba criando um ranço e distanciando o homem da mulher e vice-versa. Este comportamento é visto por alguns como sinônimo de empoderamento feminino. No entanto, revela apenas assujeitamento da mulher a um modelo machista de composição.
Há situações em que em canções cantadas por estas mulheres onde a mulher é causa de tristeza. Neste caso, um pouco mais grave, a própria mulher é porta-voz do ressentimento e do ódio contra a mulher. Falarei sobre isso aqui ainda quando for analisar músicas de compositoras brasileiras. No entanto, a canção ‘Leão’ foge de tudo isso. De acordo com os critérios que estou utilizando para analisar a música sertaneja, esta música é excepcional. É uma canção de amor extrema. Nesta música não há nada de ressentimento e ódio. Entre as que analisei é a única música em que: a) a mulher é causa de alegria (Amor), b) a mulher é causa de alegria a si mesma (Deleite) e c) Em que o homem é causa de alegria (Amor). Esta música foi blindada do ressentimento de todas as formas que se possa pensar. O ódio não pode entrar nela e por isso a chamo de ‘a canção do amor inabalável’. A canção do amor inabalável seria um modo de compor, de escrever canções, um olhar mútuo de admiração onde não existiria espaço para o ódio e o ressentimento e que caracterizaria também as interações entre brasileiros, brasileiras e brasileiras.
“A canção do amor inabalável é a canção que possui 3 ou mais tipos de amor. É uma canção de amor extrema. Nesta canção não há espaço para o ódio e o ressentimento e tampouco para o ódio e o ressentimento contra a mulher. Por isso ela é tão necessária. E ‘Leão’ é a receita para isso”
Compositoras podem escrever canções em que a mulher é causa de alegria no homem. Isto é revolucionário.
Em ‘Leão’, embora escrita e cantada por uma mulher, a mulher é causa de alegria no homem (amor). Isso mostra que embora as canções de ressentimento contra a mulher sejam maioria escritas pelo homem, há uma janela de revolução aqui, uma linha se desprende e mostra um caminho totalmente novo que é: as mulheres podem escrever canções em que a mulher é causa de alegria no homem (amor) contrariando o que tem sido feito até agora. Há a possibilidade de contestação. Quando a mulher escreve canções em que a mulher é causa de alegria no homem elas estão se posicionando contra o procedimento padrão e preconceituoso, dizendo: “Não! Discordo do seu jeito de compor. A mulher não é causa de tristeza no homem, mas causa de alegria. Vamos fazer desse jeito a partir de agora’. Vamos fazer desse modo para que a mulher não seja vista como causa de tristeza pela sociedade. Para que essa visão distorcida da mulher não lhe cause ais agravos.
A cumplicidade
Nas canções de encontro onde o homem e a mulher são causa de alegria um ao outro e a mulher é causa de alegria a si mesma, ela conduz o jogo como pode ser notado em compositoras brasileiras como Alcione e outras. Mas não de uma maneira autoritária. Há cumplicidade, flerte, interesse, a coisa aparece muito com os momentos de alegria a dois na intimidade, numa cama. Acho que é isso. Essa música consegue captar os momentos leves, divertidos e alegres de um casal na intimidade, aquelas insinuações, em que somente os dois conhecem e que também são muito comuns nos relacionamentos homoafetivos.
A ampliação e afirmação da sensualidade feminina
No mais, se majoritariamente as canções falam mal da mulher, em Leão fica evidente algo interessante. Quando a mulher é causa de amor a si mesma, quando há deleite, prazer com características suas, ela amplia sua sensualidade ou há uma percepção de sua sensualidade. Quando a mulher é causa de tristeza a si mesma, ela se desvaloriza e tem afetada a expressão e percepção da sua sensualidade. Nesta música Marilia Mendonça deixa evidente sua sensualidade e aponta o caminho para a mulher afirmar sua sensualidade. Vejo esse deleite e esta sensualidade muito presente em compositoras da música brasileira como Elza Soares, Alcione, Angela Roro e outras. Nestas compositoras, a mulher é causa de alegria a si mesma. Afirma, valoriza suas qualidades, suas características e evidencia como consequência sua sensualidade, o vigor do seu posicionamento.
A construção de divas também na música sertaneja
Com esta canção Marília Mendonça nos oferece pistas, mostra o caminho das pedras para a construção de divas também na música sertaneja e a chave parece ser: a) o deleite, a compositora afirmando suas carcterśticas positivas, sua beleza; b) a presença de um homem nas canções que se encante com isso, onde esta beleza seja causa de alegria no homem e c) a presença de um homem na canção que é causa de alegria na mulher. Portanto, a composição em que o homem é causa de tristeza, cultiva o sentimento de ódio em relação ao homem é negativo para a mulher. É melhor um homem que cause alegria na mulher, pois assim fica clara a sua capacidade de amar que tem sido constantemente negada na música sertaneja.
Leão nos mostra que não basta a mulher ser causa de alegria a si mesma, ou causa de alegria de um modo geral, é importante também que na canção ela seja causa de alegria no homem. Se ela é causa de alegria no homem, isto derrui, vai contra o projeto caipira onde a mulher é causa de tristeza. Se o homem é causa de alegria nela trata-se de uma canção de amor extrema. Ela está bem consigo, representa bem a mulher na canção, o homem da canção está bem porque ele a ama, ela é causa de alegria nele. E também o homem é causa de alegria nela. E a canção escapa de qualquer ressentimento, de qualquer expressão de ódio. Enfim, nas canções de amor extremas como em Leão, a mulher está apaixonada por si mesma e pelo homem, o homem da canção está apaixonado por si mesmo e pela referida mulher. E ambos podem ainda, estar apaixonados pelas coisas que os circundam.
Qual é o bom relacionamento?
Esta música parece nos mostrar também um caminho para o bom relacionamento ou para nos dizer quando o bom relacionamento acontece. Parece existir um tripé. Você estar satisfeito consigo mesmo, com aquilo que está fazendo ou afirmar uma característica positiva sua. O parceiro estar satisfeito consigo mesmo, sabendo que está fazendo seu melhor em algo. O parceiro ser causa de alegria em você e ele saber disso. E você saber que é causa de alegria no parceiro que resulta numa receita ou conselho:
– Quando isso tudo acontecer, você está diante de um bom relacionamento. É deste relacionamento que pode surgir a canção do amor inabalável ou inspirar canções como Leão
Então
– Faça coisas que lhe traga alegria, que sejam boas para você e se orgulhe disso, faça coisas das quais você se orgulhe e possa bater no peito com convicção “Eu faço isso!’. Muitos chamam isso de amor próprio, eu chamo de ser causa de alegria a si mesmo.
– É importante que o parceiro faça coisas que traga alegria a ele, das quais possa se orgulhar.
– Afirme as características positivas do parceiro sejam elas: físicas, emocionais, esprituais etc e deixe ele saber como você sente em relação a isso;
– Que o parceiro afirme suas características positivas, principalmente quando você as exibir. As divas da música brasileira mostram muito isso em suas canções, a abertura, a capacidade de receber esta admiração.
Parece que o resultado desta fórmula é a cumplicidade, a interação leve, feliz, a troca de olhares com admiração. Se não há a percepção que um é causa de alegria no outro o que acontece? A interação fica truncada, não há cumplicidade, o circuito não fecha. Portanto, nada pode ser mais pernicioso para o relacionamento, a presença de um dos parceiros em que não pode ser causa de alegria para si mesmo. Se não há admiração, alegria por si mesmo, reduz-se a lista de coisas para o outro admirar, reduz-se a capacidade do parceiro ser causa de alegria e o amor diminui.
Existe um elemento político muito poderoso nesta canção
Diz-se que o bom do Brasil são os brasileiros e que quem faz o Brasil ser Brasil são os brasileiros. E com esta canção isso é um pouco ampliado. O bom do Brasil são os brasileiros, as brasileiras e o encontro entre brasileiros e brasileiras. O que faz Brasil ser Brasil não são os brasileiros, mas também as brasileiras e o encontro entre estes. O que faz do Brasil ser Brasil é o fato de mulher e do homem ser causa de alegria um no outro, é a cumplicidade, a fraternidade, a admiração recíproca entre brasileiros e brasileiras que se traduz em momentos genuínos de festividade. É admiração que um tem pelo outros e aqui inclui também os relacionamentos de amizade e homoafetivos. É disso que esta canção fala e é para isto que esta canção aponta. Quando essa cumplicidade entre brasileiros e brasileiras vai se desenvolvendo as brechas para o ódio no Brasil ou para qualquer movimento que se baseie nisso são reduzidas. É o feliz encontro entre brasileiros e brasileiras que nos protege de projetos de ódio.
A hibridação da música sertaneja não é algo totalmente negativo
A partir da terceira geração da música sertaneja começa a ocorrer uma nova hibridação do sertanejo. Este comportamento não é novo. Na segunda geração da música sertaneja também houve esta hibridação que começa com Léo Canhoto e Robertinho e depois, Milionário e José Rico e trazem elementos do rock, do Folk EUA e da música feita na América Latina que acaba enriquecendo-a e a transformando. No entanto, na terceira geração da música sertaneja, esta hibridação incorpora outros elementos como o Funk, o Rap, o Rock e outros. Para os mais conservadores, esta hibridação seria algo negativo, pois afetaria a identidade da música caipira. No entanto, do ponto de vista da nossa análise, como nos outros gêneros, a propalação do ódio a mulher é talvez menor e exista a presença de outros amores, esta hibridação acabaria trazendo estes elementos para a música sertaneja, diluindo o papel da música sertaneja em ser algo usado para propalar o ódio a mulher. Ao incorporar outros amores esse papel iria diminuindo. A canção Leão é exemplo disso. A canção é criada por um Rapper e traz para a música sertaneja algo diferente que é a canção de amor e a ideia de parceria muito presente neste universo. Tentar conservar a música sertaneja é também tentar conservar o ódio e o ressentimento a mulher. Na medida em que se é conservador em relação a música sertaneja, afirma-se também esta vontade de preservar aquilo que a música sertaneja possui de mais negativo, ou seja, o ódio a mulher. Se a hibridação da música sertaneja contribui para diluir projetos musicais de propalação de ódio a mulher, esta hibridação deve ser bem vinda e vista com bons olhos.
Conclusões: O que nos faz bem é a canção do amor inabalável
Quantas lições interessantes podemos tirar de uma música em que a mulher não é causa de tristeza. A conclusão que eu chego é que a música em que a mulher é causa de tristeza, ou seja, a música onde se propala o ressentimento e o ódio a mulher está nos roubando oportunidades, está nos impedindo de passar. A música que propala o ressentimento a mulher e /ou ao homem nega as características positivas que temos e afirma as negativas e até mesmo características negativas inexistentes. Faz com que garimpemos no outro, motivos para desconfiar, não se envolver e permanecer distantes, indiferentes. Essa música reduz a cumplicidade, a interação, pois a tendência é que um olhe com desconfiança para o outro. Leão revoluciona do ponto de vista do fazer musical, apresenta uma oportunidade para a mulher revolucionar a música sertaneja (que pode ser utilizada ou não), apresenta pistas para um bom relacionamento a todos relacionamentos e ainda, é relevante do ponto de vista social e político.
Diante disso questiono. Qual é a música que faz bem a alma da mulher? Resposta: Canções de amor extremas. Canções de amor onde ele sente amor por ela e ela sente amor por ele, canções de encontro. Canções onde ela é causa de alegria nele e ele é causa de alegria para ela. Canções onde ele é causa de alegria a si mesmo, em que ele se sente orgulhoso por aquilo que ele é ou faz, onde ele tenha amor próprio. Canções onde ela é causa de alegria a ela mesma, onde ela se deleita com ela mesma e afirma suas características positivas. Canções onde tenha isso tudo ou um pouco disso e mais o amor a um lugar (cidade, país, ponto turístico, cômodo da casa etc) porque aí a canção se transforma numa canção onde existe a presença da beleza e da felicidade. Faz bem para alma da mulher ( e para a alma de todo mundo) uma canção que tenha uns 5 ou 6 tipos de amor e nenhum ressentimento ou ódio. Faz bem para a alma da mulher e para todos nós, a canção do amor inabalável.
“E a força antiga do espírito virando convivência
De amizade apaixonada
Sonho, sexo, paixão
Vontade gêmea de ficar e não pensar em nada
Planejando pra fazer acontecer
Ou simplesmente refinando essa amizade
Eu vou dizendo na sequência bem clichê
Eu preciso de você”
(…)
Eterna love song de nós dois
E se você se esqueceu para que serve uma canção, uma canção serve para isso. Skank sempre nos lembra
Uma canção é pra acender o sol
No coração da pessoa
Pra fazer brilhar como um farol
O som depois que ressoa
Uma canção é pra trazer calor
Deixar a vida mais quente
Pra puxar o fio da paixão
No labirinto da gente
Pra consertar
Pra defender a cidadela
Pra celebrar
Pra reunir bairro e favela
(…)
Pra clarear a escuridão
que o mundo encerra
Pra balançar
Pra reunir o céu e a terra
Uma canção é pra fazer o sol
Nascer de novo
Pra cantar o que nos encantou
Na companhia do povo
Pra consertar
Pra defender a cidadela
Pra celebrar
Pra reunir bairro e favela
Uma canção é pra acender o sol
No coração da pessoa
Pra fazer brilhar como um farol
O som depois que ressoa
Pra clarear a escuridão
E o mundo encerra
Pra balançar
Pra reunir o céu e a terra
e